domingo, 19 de outubro de 2008

O sorriso de Ana Rita


O cenário é implacável, a pobreza evidente. Mas o sorriso de Ana Rita, de seis anos, parece inabalável. Ainda acredita que tudo é possível. É ela quem segura, com carinho, o queixo da irmã mais velha, Soraia, de 12 anos, incitando-a a esquecer a vergonha e a levantar a cabeça perante a adversidade. A mãe, Maria de Lurdes, 38 anos, observa o gesto, que subscreve. Uma imagem que nos prende à história que se conta em redor, na página de jornal. Uma história de pobreza, mas também de esperança. Uma história que nos consegue arrancar um sorriso. Ainda que seja um sorriso triste.
Não seria essa a intenção, mas esta passou a ser também uma história sobre a importância do Estado no apoio aos mais pobres e sobretudo na criação de mecanismos que permitam contrariar o ciclo de pobreza. Particularmente sobre a importância do Rendimento Social de Inserção. Porque é também graças aos 460 euros que esta família recebe, todos os meses, que Ana Rita ainda consegue mostrar o seu sorriso irresistível.
É com esses 460 euros que Maria de Lurdes consegue dar às três filhas "um bocadinho de vida". E é com o programa que lhe está subjacente que espera concluir, em breve, o nono ano de escolaridade e, mais tarde, o 12.º ano. "Não quero viver do Rendimento", garante mais uma vítima da nossa crise endémica e do desemprego que lhe está associada [não confundir com esta espécie de farsa, que atinge as bolsas e os bancos, que a conjuntura nos impôs, mais uma vez, por estes dias].
Esta é igualmente uma história que nos mostra as condições de habitação miseráveis em que ainda vivem muitas famílias e muitas crianças portuguesas. E um exemplo de como o investimento do Estado e das autarquias na habitação social passou demasiadas vezes ao lado de quem merece e de quem precisa. Muita inauguração, muita pompa, muita propaganda, pouco proveito. Muitos milhares de cidadãos com bons empregos e bons salários que foram beneficiados com casas de quase luxo em Lisboa, para outros tantos que sobrevivem em condições desumanas em tugúrios como o que alberga Maria de Lurdes, Soraia e Ana Rita.
Soraia tentou resistir à fotografia, à exposição pública da miséria em que vive. A mãe insiste: "Precisamos de mostrar as condições em que vivemos". Soraia explica, com desarmante complexidade: "Mas eu não quero que o Mundo veja". Ana Rita levanta-lhe o queixo com a mão. Só tem seis anos, mas talvez tenha percebido que é bom que o Mundo veja. O seu sorriso também é uma acusação.

Nota: A história que se refere na crónica foi escrita por Maria Cláudia Monteiro, fotografada por Adelino Meireles e publicada na edição do JN da passada sexta-feira.

(*) Crónica originalmente publicada
na edição deste domingo do JN

6 comentários:

Anónimo disse...

Sr. Rafael,

Não tenho tido muita disponibilidade para tecer comentários, mas todos os dias e desde que deixou de participar no blog o Porto de Leixões, que lhe faço uma visita aqui neste saudável espaço de informação que dá por o nome Circunvalação. Quanto ao último post, é de facto marcante, não só pelo conteúdo óbvio e bem explicito da nossa triste realidade, mas também pelo sentido de oportunidade. Queria também acrescentar que a situação que é reportada, eu vivo todos os dias, não a nível pessoal felizmente, mas sim a nível profissional, tendo em conta que tenho que visitar e entrar em casa de vários clientes que vivem este drama de forma envergonhada e angustiante e tentam tudo por tudo camuflar a realidade com a vergonha de que os vizinhos, amigos e de certa forma a sociedade saibam no desaire em que caíram. Eu como cidadão sinto-me envergonhado impotente e deveras frustrado por ainda ver que existem políticos que se sintam impolutos perante tal atrocidade que é; e será cada vez mais, numa sociedade inserida numa politica global e totalmente economicista.

Resta-me a satisfação de ler os seus artigos e de outros profissionais da comunicação, com a finalidade de dar voz a quem já a perdeu há muito.

Cumprimentos
Oliveira.

JOSÉ MODESTO disse...

Caro Rafael, interessante esta noticia, indiferente também.
O Rendimento Social de Inserção é uma medida incómoda nos olhos dos Portugueses.
Precisa-se de uma análise profunda a quem atribuir este beneficio Social...eu não estou de forma nenhuma contra ele, estou sim contra aqueles que gozam com ele.
Ser pobre um dia não custa nada. O que custa é sê-lo todos os dias.

Anónimo disse...

Às vezes, Rafael, és lindo.
Isaurinha

Anónimo disse...

Rafael este é o tipo de noticias que incomoda o ego de cada um de nós que, nos importamos com a mesquilhes alheia, com o aparecer, com a importancia nada importante do que disse ou fez fulano, quando ainda a familias que passam verdadeiras necessidades, sem o olhar atento de quem governa, de quem decide, e de toda uma sociedade egocentrica.

Tentemos mudar isto e este blog é um dos canais.

Parabens Rafael

Kim 4

Anónimo disse...

Infelizmente é uma dura realidade que muitos tentam escamotear! Não posso deixar de falar em Narciso Miranda a quem os seus detractores constantemente enxovalham por defender os coitadinhos, pobrezinhos...pois é meus senhores ela anda por aí não sabemos é quando nos poderá bater á porta.. haja quem se preocupa e tenha feito algo contra este ciclo dificil que ainda agora iniciamos...

JOSÉ MODESTO disse...

Mas...o que é que tem um Presidente de Câmara a vêr com o Rendimento Social de Inserção?
Essa tarefa ou outra de área social tem a vêr directamente com a Segurança Social e numa com uma Câmara.