E se de repente olhássemos 20 anos para trás? Para a cidade e para a gente de que é feita? Como fomos antes, como somos agora? Melhores, piores? Ou apenas diferentes, sem qualificativos?Espreitava hoje pelo gradeamento do que já foi a Gist Brocades, a antiga fábrica de fermentos da marginal - onde agora se erguem vigas de cimento e paredes de tijolo - e a memória remeteu-me para alguém que já lá trabalhou e está agora nos confins da Rússia. Quem estava comigo, mais sensorial do que eu, recordava por sua vez o odor adocicado do fermento. Um cheiro bom ou mau? Todos temos memória da cidade, das coisas e das pessoas, apenas guardamos instantâneos diferentes. Ou complementares.Há 20 anos não havia calçadão na marginal, ali em frente à Gist. Mas na verdade ninguém lhe sentia a falta. Bastava-nos o areal e o mar. Quando o processo produtivo corria mal, a fábrica esgotava tranquilamente os seus enormes tanques para o oceano, sem tratamento. Mas nós, ou não sabíamos, ou não queríamos saber. Agora seria uma coisa má, mas naqueles tempos a militância ecologista ainda dava os seus primeiros e dolorosos passos. Se não me falha a memória, em Valpaços, em refregas contra os eucaliptos e os bastões da GNR.Há 20 anos, o que se via da minha janela era uma bela Quinta, com muito de verde e pouco de Seca. Eu, por exemplo, entretinha-me às vezes a observar cavalos e cavaleiros no picadeiro que a quinta tinha. Duas décadas depois, e com excepção de uma pequena mancha arbórea junto à Circunvalação, o que se vê da minha janela é betão, e de má qualidade. Mas será assim tão mau? Para as minhas observações a partir da janela é capaz de ser, mas a verdade é que parte desse betão corresponde ao Hospital de Pedro Hispano e o facto de ele entretanto se ter feito é coisa boa. A outra coisa que se vê é o enorme complexo cooperativo das Sete Bicas. Feio, mas útil, porque precisamos todos de uma casa para morar e são poucos os que têm que chegue para os jogos de arquitectura de Matosinhos-Sul.Há 20 anos, entre as urbanizações da Quinta Seca e do Real, por exemplo, cruzavam-se vários caminhos, em sentido real e figurado. Mas a ligação principal era de terra batida e pedra solta, pelo meio de mato. A aventura era maior do que hoje, e aventura é uma coisa boa, mas também tinha os seus riscos. Eu que o diga que ainda me lembro do “salteador” [se fosse hoje, diria arrumador] que uma vez me quis ficar com a carteira. Estava sempre vazia, mas era minha. Por isso defendi-a corajosamente… fugindo pela vereda abaixo.Hoje já não existe o velho caminho entre as duas urbanizações. Mas há ruas, passeios e jardins. E até a blogosfera, porque os factores de união estão onde menos se espera. Basta abertura de espírito. O canal de metro também fica mais ou menos a meio caminho e eu sou a melhor testemunha de que essa foi uma mudança boa, poupo dinheiro nas deslocações casa/trabalho e já agora poupo o ambiente com mais eficácia que os ecologistas tontos que atacam milheirais. Há 20 anos, não tinha metro, tinha o 76 e, quando estava para aí virado, o 19 e o 1. Passeio bonito, mas lento.Tenho saudades e não tenho, porque está tudo guardado. As cidades felizmente envelhecem, reconstroem-se e redescobrem-se. E é reconfortante saber que com as pessoas que a habitam pode acontecer o mesmo.
PS - São imagens de há 20 anos. O que confirma que há coisas que mudam (a paisagem que se vê da minha janela) e outras que não (a cara de trombudo). Eu não te disse?